top of page

A Flup, ela própria uma ideia improvável, vem sobrevivendo aos cenários mais pessimistas.

 

Ninguém acreditava, nem mesmo os amigos mais fraternos, que conseguiríamos erguer um festival literário internacional dentro de uma favela, mesmo em se levando em conta que o idealizamos no auge das políticas inclusivas.

 

A violência da cidade foi uma ameaça real desde a segunda edição, quando fomos para Vigário Geral na época em que o Comando Vermelho decretou a morte de José Júnior, nosso anfitrião. Testemunhamos uma sangrenta transição no comando do tráfico na Mangueira. A queda do helicóptero da Polícia Militar uma semana depois da Flup dá uma dimensão do nível de negociação que fizemos para a trégua na guerra interminável da Cidade de Deus.

Nada mais improvável do que a edição na mesma Cidade de Deus – além dos embates entre bandidos e policiais, havia uma explosiva mistura de crise econômica, golpe jurídico-parlamentar e a eleição de um pastor evangélico para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Ainda hoje não sabemos como os conservadores não invadiram a apresentação de Jo Clifford, que apresentou sua Jesus trans com o apoio de um coral formado por 40 mendigos.

Também não sabemos como implantamos a complexa agenda de eventos literários num ano tão conturbado como o de 2018 – estamos na pista desde a noite de 22 de maio, quando inauguramos a Flup Pensa com a palestra de Martinho da Vila no Museu da Escravidão e da Liberdade. Organizamos pelo menos uma atividade nas 24 semanas subsequentes.

Duas dessas semanas dão uma noção mais precisa do desafio a que nos propusemos em 2018 – no final de agosto e no final de outubro organizamos slams em 14 escolas públicas de ensino médio do Rio de Janeiro. Realizamos quatro processos formativos, que resultaram na publicação de 5 livros, 25 argumentos para audiovisual, um documentário e um desfile de moda. Não nos perguntem como arrumamos energia e recursos financeiros para essa empreitada.

Agora vamos para uma culminância igualmente épica - com cerca de 80 autores, todos eles negros, reunidos na Biblioteca Parque Estadual, no coração da Pequena África, berço da Civilização Carioca. Uma leitura mais atenta deste programa mostra que 25 destes nomes vêm do que o pensador britânico Paul Gilroy chamou de Atlântico Negro - os mares navegados pelos africanos escravizados. Não menos que onze deles nasceram na própria África. Oito ainda vivem no continente africano.

Será a primeira vez que fazemos a Flup fora da favela, mas isso não significa uma rendição à violência nas comunidades populares. Estar agora num equipamento tradicional da cidade é acima de tudo um gesto político, que mostra o quão central é esta narrativa que ora apresentamos à cidade. Nada que diga respeito ao negro no Brasil pode ficar restrito ao gueto. Afinal, estamos falando de algo que interessa diretamente a mais da metade da população do segundo maior país negro do mundo.

Ecio Salles e Julio Ludemir

bottom of page